17 de junho de 2012
Dom Sebastião voltou
Luiz Inácio Lula da Silva tem como princípio não ter princípio, tanto
moral, ético ou político. O importante, para ele, é obter algum tipo de
vantagem. Construiu a sua carreira sindical e política dessa forma. E,
pior, deu certo. Claro que isso só foi possível porque o Brasil não teve
- e não tem - uma cultura política democrática. Somente quem não
conhece a carreira do ex-presidente pode ter ficado surpreso com suas
últimas ações. Ele é, ao longo dos últimos 40 anos, useiro e vezeiro
destas formas, vamos dizer, pouco republicanas de fazer política. Quando
apareceu para a vida sindical, em 1975, ao assumir a presidência do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, desprezou todo o
passado de lutas operárias do ABC. Nos discursos e nas entrevistas,
reforçou a falácia de que tudo tinha começado com ele. Antes dele, nada
havia. E, se algo existiu, não teve importância. Ignorou (e humilhou) a
memória dos operários que corajosamente enfrentaram - só para ficar na
Primeira República - os patrões e a violência arbitrária do Estado em
1905, 1906, 1917 e 1919, entre tantas greves, e que tiveram muitos dos
seus líderes deportados do País. No campo propriamente da política, a
eleição, em 1947, de Armando Mazzo, comunista, prefeito de Santo André,
foi irrelevante. Isso porque teria sido Lula o primeiro dirigente
autêntico dos trabalhadores e o seu partido também seria o que
genuinamente representava os trabalhadores, sem nenhum predecessor.
Transformou a si próprio - com o precioso auxílio de intelectuais que
reforçaram a construção e divulgação das bazófias - em elemento divisor
da História do Brasil. A nossa história passaria a ser datada tendo como
ponto inicial sua posse no sindicato. 1975 seria o ano 1. Durante
décadas isso foi propagado nas universidades, nos debates políticos, na
imprensa, e a repetição acabou dando graus de verossimilhança às
falácias. Tudo nele era perfeito. Lula via o que nós não víamos, pensava
muito à frente do que qualquer cidadão e tinha a solução para os
problemas nacionais - graças não à reflexão, ao estudo exaustivo e ao
exercício de cargos administrativos, mas à sua história de vida. Num
país marcado pelo sebastianismo, sempre à espera de um salvador, Lula
foi a sua mais perfeita criação. Um dos seus "apóstolos", Frei Betto,
chegou a escrever, em 2002, uma pequena biografia de Lula. No prólogo,
fez uma homenagem à mãe do futuro presidente. Concluiu dizendo que -
vejam a semelhança com a Ave Maria - "o Brasil merece este fruto de seu
ventre: Luiz Inácio Lula da Silva". Era um bendito fruto, era o Messias!
E ele adorou desempenhar durante décadas esse papel. Como um
sebastianista, sempre desprezou a política. Se ele era o salvador, para
que política? Seus áulicos - quase todos egressos de pequenos e
politicamente inexpressivos grupos de esquerda -, diversamente dele,
eram politizados e aproveitaram a carona histórica para chegar ao poder,
pois quem detinha os votos populares era Lula. Tiveram de cortejá-lo,
adulá-lo, elogiar suas falas desconexas, suas alianças e escolhas
políticas. Os mais altivos, para o padrão dos seus seguidores, no máximo
ruminaram baixinho suas críticas. E a vida foi seguindo. Ele cresceu de
importância não pelas suas qualidades. Não, absolutamente não. Mas pela
decadência da política e do debate. Se aplica a ele o que Euclides da
Cunha escreveu sobre Floriano Peixoto: "Subiu, sem se elevar - porque se
lhe operara em torno uma depressão profunda. Destacou-se à frente de um
país sem avançar - porque era o Brasil quem recuava, abandonando o
traçado superior das suas tradições...". Levou para o seu governo os
mesmos - e eficazes - instrumentos de propaganda usados durante um
quarto de século. Assim como no sindicalismo e na política partidária,
também o seu governo seria o marco inicial de um novo momento da nossa
história. E, por incrível que possa parecer, deu certo. Claro que desta
vez contando com a preciosa ajuda da oposição, que, medrosa, sem ideias e
sem disposição de luta, deixou o campo aberto para o fanfarrão. Sabedor
do seu poder, desqualificou todo o passado recente, considerado pelo
salvador, claro, como impuro. Pouco ou nada fez de original. Retrabalhou
o passado, negando-o somente no discurso. Sonhou em permanecer no
poder. Namorou o terceiro mandato. Mas o custo político seria alto e ele
nunca foi de enfrentar uma disputa acirrada. Buscou um caminho mais
fácil. Um terceiro mandato oculto, típica criação macunaímica. Dessa
forma teria as mãos livres e longe, muito longe, da odiosa - para ele -
rotina administrativa, que estaria atribuída a sua disciplinada
discípula. É um tipo de presidência dual, um "milagre" do salvador.
Assim, ele poderia dispor de todo o seu tempo para fazer política do seu
jeito, sempre usando a primeira pessoa do singular, como manda a
tradição sebastianista. Coagir ministros da Suprema Corte, atacar de
forma vil seus adversários, desprezar a legislação eleitoral, tudo isso,
como seria dito num botequim de São Bernardo, é "troco de pinga". Ele
continua achando que tudo pode. E vai seguir avançando e pisando na
Constituição - que ele e seus companheiros do PT, é bom lembrar, votaram
contra. E o delírio sebastianista segue crescendo, alimentado pelos
salamaleques do grande capital (de olho sempre nos generosos empréstimos
do BNDES), pelos títulos de doutor honoris causa (?) e, agora, até por
um museu a ser construído na cracolândia paulistana louvando seus
feitos. E Ele (logo teremos de nos referir a Lula dessa forma) já disse
que não admite que a oposição chegue ao poder em 2014. Falou que não vai
deixar. Como se o Brasil fosse um brinquedo nas suas mãos. Mas não
será? Foto: web. Marco Antonio Villa - O Estado de S.Paulo.
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